O que “cabelo crespo tem a ver com espiritualidade? Ou, o que espiritualidade tem a ver com cabelo crespo? Para alguns tudo a ver, para outros nada. Dependendo da compreensão que temos a respeito do que é espiritualidade, talvez não faça sentido essa relação, afinal, espiritualidade, para alguns cristãos diz respeito tão somente as coisas imateriais. A espiritualidade, tem a ver com oração, leitura da Bíblia, jejum, cantar louvores, ir à igreja, não obstante, as coisas comuns dessa vida são deixadas de lado, visto que elas não são sagradas para Deus.
Espiritualidade encarnada.
Uma das verdades mais fantásticas da fé cristã, é a de que o ser humano foi criado segundo a “Imagem e semelhança de Deus”. Neste sentido, o “imago Dei”, é a identidade mais profunda dos seres humanos, ou seja, o ser humano foi desenhado por Deus.
Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. O ser humano foi criado para ser “imagem de Deus no mundo”. O pastor Ed René, em seu livro “Vivendo com propósitos”, diz que “a imagem de Deus no homem possui pelo menos quatro dimensões fundamentais: Espiritual, pessoal, relacional e criativa” (2003, p. 66).
Essas quatro dimensões nos ajudam a compreender a integralidade do ser humano. Mesmo que nossa cultura alimente uma visão de ser humano, um tanto quanto distorcida e dicotômica, o convite do evangelho é para que olhemos para “Jesus Cristo” que é, de acordo com as escrituras “a imagem do Deus invisível”, aquele que encarna e vive uma espiritualidade integral. A verdadeira espiritualidade não é desencarnada, não nos torna anjos, muito menos negligentes com as coisas mais ordinárias da vida, antes, nos torna plenamente humanos – como Jesus.
Seu cabelo parece esponja, “é ruim”.
O “cabelo crespo” foi e ainda é muito depreciado em nossa sociedade. Negros e negras em geral crescem ouvindo todo tipo de bobagem quanto a sua aparência, e o cabelo é um dos principais alvos de racismo. O padrão de beleza estabelecido principalmente no Ocidente é de mulheres “brancas com seus longos cabelos. O “cacheado” não é muito benquisto. Crianças negras, enfrentam desde a infância, nos mais variados ambientes, sejam eles familiar ou escolar, de que seu “cabelo crespo”, é feio e ruim, se comparado com o “liso”, que é visto como sinônimo de beleza.
Para evitar sofrimento e rejeição, muitas mães optam por alisar o “cabelo crespo” de suas filhas, para se enquadrarem ao padrão aceitável. Ao se tentar evitar um problema, cria-se outro ainda maior. As crianças negras crescem traumatizadas com sua autoestima prejudicada, visto que ao se olharem no espelho não conseguem se aceitar, uma vez que seu “cabelo é associado a algo sujo, feio e inadequado”.
Foi Deus quem criou o “cabelo crespo”.
Parece que num mundo que se constrói a partir de estereótipos racistas, não é suficiente dizer que “todo ser humano carrega a imagem de Deus”. É preciso ir além, repensar os hábitos, reconfigurar o imaginário social e reafirmar de maneira educativa a beleza que é a diversidade.
O cabelo crespo, expressa não apenas a beleza da criança negra, mas, sobretudo a verdade de que nosso Deus é “criativo”. E que sem diversidade não existe beleza. Todo olhar depreciativo, racista para com o “cabelo crespo”, é uma afronta direta ao Deus que nos criou segundo a sua “imagem e semelhança”.
Para o cristão, rejeitar o racismo, e todas essas práticas racistas, é muito mais do que simplesmente não reproduzir o imperativo ético, “não seja racista”, mas, é encarnar em nossas vidas pessoais e coletivas, pequenos modelos ambulantes da definitiva nova criação que Deus prometeu instituir e que ele estabeleceu, de maneira categórica, quando elevou Jesus, o Ungido, de entre os mortos. A suprema e gloriosa vocação do cristão sempre foi essa. Assim, rejeitar o racismo e abraçar a diversidade da família de Jesus deve ser algo tão óbvio quanto orar o Pai-Nosso, celebrar a Eucaristia ou ler os quatro Evangelhos. Não é só uma “regra a mais” que devemos cumprir. É fator constitutivo daquilo que somos. (Wright, 2020, p.4).
Em Jesus, uma nova família, policromática formam uma unidade coerente do corpo de Cristo com seus muitos membros, e expressam no seu modo de viver, a luz viva de unidade. Essa família, que não é hegemônica, é um sinal de que há uma forma diferente de ser humanidade.
Meu nome é Joyce, tenho cabelo crespo e sou amada por Deus.
O problema do racismo e a discriminação racial está presente até mesmo no ceio da igreja. Lutar contra, deve ser muito mais do que simplesmente dizer que “racismo é pecado”, é necessário denunciar de forma concreta e educativa. Como observa James Smith, é necessário reorientar nossos amores, aprender a reimaginar nosso mundo.
O cabelo de Joyce e o Espírito Santo, escrito por Esaú, é simplesmente uma obra incrível. O livro é sobre o cabelo de Joyce e a relação que ela tem com ele, que um dia parece com um rabo de cavalo e às vezes com um black power.
As meninas com as quais Joyce convive na escola e os desenhos que assiste, as meninas tem cabelo liso, Joyce se sente diferente e isso nem sempre é fácil. Às vezes Joyce acha que seu cabelo deveria se parecer com os das meninas de cabelo liso, mas, seu pai, de forma tão inspiradora a ensina sobre a criatividade de Deus. E nisso, Joyce compreende que as pessoas são diferentes e que foi Deus quem fez todas as cores e formas. E isso expressa, mais uma vez a criatividade de Deus e como cada um de nós, sejamos negros, brancos etc., somos uma obra de arte.
Foi Deus quem criou todas as Joyce(s), e cada uma delas, com suas particularidades e seus cabelos crespos, são a expressão da graça e bondade de um Deus criativo, que se manifesta em meio à diversidade.
A diferença racial e étnica não é obra do acaso, foi Deus quem colocou em sua criação, assim, louvar, admirar e buscar a diversidade é um modo de abraçar a vontade de um Deus. Olhar para Joyce, com seus cabelos crespos e celebrar isso, é reconhecer a beleza do Deus que se manifesta na diversidade.
Cabelo crespo, tem tudo a ver com espiritualidade. Joyce com seus cabelos crespos, é uma obra de arte, feita com amor e propósito.
QOHÉLET